Toxicologia e redução de danos

Por Silvia de Oliveira S. Cazenave, ex-superintendente de toxicologia da Anvisa e professora da PUC Campinas

“À luz dos conhecimentos atuais” era uma das frases preferidas da saudosa Professora Esther de Camargo Fonseca Moraes, pioneira na implantação da Toxicologia no Brasil, quando manifestavamos as incertezas sobre a toxicidade das substâncias ou sobre os efeitos nocivos produzidos por sua interação com o organismo ou, até, na metodologia analítica necessária para obtenção do conhecimento.

Fazer comunicações científicas nunca foi muito fácil pois pressupõe um conhecimento conceitual e evolutivo do processo de desenvolvimento da ciência em todos os seus aspectos. Quando o assunto diz respeito ao uso de drogas falhamos ainda mais devido ao preconceito e ao envolvimento com questões morais e políticas. Há um descompasso entre a ciência e o senso comum.

Podemos iniciar esse debate com o próprio conceito de droga, que pelo senso comum nos leva a imaginar imediatamente uma substância proibida, quando do ponto de vista da toxicologia, droga é qualquer substância que tenha finalidade medicamentosa ou sanitária (Portaria 344/98 – Anvisa/MS). Não é o proscrito ou o ilícito apenas. Mas a política de guerra às drogas dos últimos 40 anos criou um abismo de preconceito entre a ciência e a percepção da sociedade sobre o assunto, tornando a discussão desse tema cada vez mais árdua.

Vejam por exemplo a resistência de parte da sociedade em relação às políticas públicas de Redução de Danos (RD) que nada mais é do que uma política de cuidado à saúde, oferecido às pessoas que não conseguem ou não desejam manter a abstinência de uma determinada substância psicoativa. A RD mesmo após mais de 30 anos de discussão, ainda é entendida como uma forma de apologia ao uso de substâncias psicoativas. No entanto RD não exclui a abstinência, não é reducionista colocando apenas a droga em primeiro lugar, não negligencia o contexto psíquico e sociocultural, mas se apresenta como uma alternativa de apoio à saúde na ótica da ação biopsicossocial.

Todo produto oferece risco, por isso devemos pensar mais frequentemente em redução de riscos e consequentemente, redução de danos. Quando, por exemplo, usamos a cultura popular para dizer que “é melhor comer antes de beber”, estamos retardando a absorção do álcool e com isso diminuindo os efeitos da embriaguez e esta é uma ação de redução de danos.

Por tratar-se de uma substância lícita tais medidas não são vistas como apologia ao consumo, embora se considere que as pessoas continuarão a fazer uso de bebidas alcoólicas, correndo riscos de intoxicações crônicas ou agudas e ainda de se tornarem dependentes.

Já quando o assunto é o tabaco, parece que, indevidamente, o conceito de RD não é aceito. Questões históricas, morais e pessoais fazem com que mesmo os profissionais mais adeptos à RD para substâncias ilícitas, se tornem conservadores em relação ao consumo deste produto mesmo em ações de redução de danos.         

O FDA (Food and Drug Administration), agência reguladora de alimentos e drogas  dos EUA, autorizou a comercialização dos produtos de tabaco de risco modificado (MRTPs – Modified Risk Tobacco Produts). A autorização se deu baseada no fato de que esse tipo de produto apresenta quantidade menor de substâncias nocivas, pois o tabaco é aquecido e não queimado e consequentemente ocorre uma mudança na exposição às substâncias tóxicas promovendo uma diminuição do risco.

Em seu relatório o FDA informa que o produto autorizado, “aquece o tabaco, mas não o queima e isso reduz significativamente a produção de produtos químicos nocivos e potencialmente prejudiciais”. E ainda que, “estudos científicos mostraram que a mudança completa dos cigarros convencionais para o sistema de aquecimento reduz significativamente a exposição do organismo a produtos químicos nocivos ou potencialmente prejudiciais”. Ou seja, menor produção de substâncias, portanto menor exposição do organismo e consequentemente menor o risco de manifestação de um efeito tóxico.

Ainda de acordo com o FDA a comercialização desses produtos contendo os alertas e as informações que foram autorizadas pode ajudar os fumantes adultos dependentes a se afastarem dos cigarros e reduzirem sua exposição a produtos químicos nocivos, mas apenas se eles optarem por uma mudança completa, abandonando o cigarro convencional. Neste caso, o risco existe, mas a exposição foi modificada e reduzida. Por isso o FDA deverá monitorar o uso do produto para determinar se os mesmos atendem ao proposto, porém sem causar aumento de uso entre os jovens.

É importante observar que esses produtos de tabaco autorizados continuam não sendo seguros e, portanto, as pessoas, especialmente os jovens que não fazem uso de fumígenos, não devem começar a usar esse ou qualquer outro produto de tabaco mesmo com risco reduzido.

Há muitos aspectos a serem analisados ainda, a avaliação toxicológica também constatou que, comparados à fumaça do cigarro, os aerossóis do tabaco aquecido contêm níveis consideravelmente mais baixos de possíveis agentes carcinogênicos e produtos químicos tóxicos que podem prejudicar os sistemas respiratório e reprodutivo. No entanto, os níveis de nicotina são similares àqueles do produto convencional. Nesse caso, ações de RD que busquem reduzir a dependência devem estar relacionadas à exposição de nicotina especificamente.

Mesmo que não haja consenso entre os especialistas sobre os novos produtos ou sobre se eles podem ser usados na perspectiva da redução de danos, não podemos nos omitir a essa discussão.

A RD deve ser vista e utilizada como uma alternativa à impossibilidade de interrupção de um comportamento compulsivo de uso de substância psicoativa. Deve servir a uma política de saúde em conjunto com ações psicossociais, independente do tipo de substância utilizada, lícita ou ilícita.

Apesar de possíveis controvérsias, os fatos científicos são relevantes e não apenas uma questão de percepção e comunicação. Não pode haver vários lados da ciência e apesar da dificuldade de se manter atualizado em função de grande quantidade de publicação científica, não pode haver tendências em interpretações de fatos científicos de acordo com os pré-conceitos de diferentes grupos sociais.