Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei Nº 2.158 de 2024 de autoria da Deputada Flávia Morais, com relatoria do Deputado Josenildo, que pretende tipificar como crime contra a saúde pública a fabricação, importação, comercialização, distribuição, armazenamento, transporte e propaganda de dispositivos eletrônicos para fumar1.
A proposta vai na contramão da maior parte do mundo, onde cerca de 100 países já permitem um comércio controlado, com regras rígidas de fabricação, oferta e consumo dos cigarros eletrônicos.2
Primeiramente é preciso fazer distinção entre os cigarros à combustão e os dispositivos eletrônicos. Tratar ambos como “tabagismo” é incorreto e levar em conta as consequências e riscos de um para medir o outro levará a decisões inadequadas para a saúde pública.
Evidências científicas robustas demonstram que os cigarros eletrônicos, também conhecidos como Dispositivos Eletrônicos para Fumar, pods ou vape, são produtos de muito menor risco comparados à cigarros queimados e seus substitutos diretos, desde que devidamente controlados e regulados.
Mais de 1.100 trabalhos científicos já foram analisados nos últimos anos, através de grandes revisões independentes, que concluem que os cigarros eletrônicos são uma forma de grande redução de danos para adultos fumantes3.
Por este motivo, países como os Estados Unidos, Reino Unido, Suécia e muitos outros, estão criando marcos regulatórios que definem um comércio controlado, porque oferecem “apenas uma pequena fração dos riscos de se fumar um cigarro convencional”4 e atuam como substitutos do tabagismo tradicional, sendo considerados a forma mais eficaz de combate ao fumo5.
O reflexo de tais decisões estão sendo vistas em nível populacional. Após regulamentação, os Estados Unidos viram o índice de uso de cigarros eletrônicos por menores de idade despencar de 27,5% em 2019 para 5,9% em 2024, com um uso diário de apenas 1,6% (CDC) e o consumo adolescente de nicotina é o menor dos últimos 50 anos, com um uso de cigarros a combustão de apenas 1,4%6.
Entre 2011 e 2023, mais de 16,5 milhões de adultos americanos trocaram os cigarros convencionais pelos eletrônicos7.
Um relatório produzido pelo Center for Black Equity mostra que entre 2010 e 2022, os cigarros eletrônicos salvaram 113 mil vidas americanas, preservou 137 bilhões de dólares no PIB (cerca de R$ 707 bilhões de reais) e economizou 39 bilhões de dólares em custos de saúde (cerca de R$ 201 bilhões de reais)8.
A Suécia está prestes a se tornar o primeiro país do mundo a ser oficialmente considerado “livre do tabagismo”, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, com uma prevalência de fumo de apenas 5%. O país regulamenta todos os produtos alternativos para consumo de nicotina, como cigarros eletrônicos, tabaco aquecido e tabaco oral. Neste país, há um índice 44% menor de mortes relacionadas ao consumo de tabaco do que os outros países da União Europeia, além de 41% menos índice de câncer e 38% menos mortes atreladas a qualquer tipo de câncer9.
A decisão da Anvisa em manter a proibição no Brasil é criticada por especialistas nacionais e internacionais do controle do tabaco10,11, apontando que a agência não levou em consideração pesquisas internacionais legítimas e ignorou a convergência regulatória que é aplicada para uma série de outros produtos, como medicamentos.
Milhões de brasileiros estão usando cigarros eletrônicos e o número cresce ano a ano, apesar da proibição existir há mais de 14 anos, conforme dados de pesquisas populacionais e as informações de apreensões da Receita Federal, que só em 2024 somaram mais de 75 milhões de reais e 2 milhões de unidades até Setembro, um aumento de mais de 10.000% (dez mil por cento) desde 201912.
Todo o consumo é oriundo do mercado ilegal, que lucra bilhões anualmente e não obedece qualquer regra sanitária. Não é surpresa que vemos notícias de pessoas ficando gravemente doentes, grande uso entre jovens e até explosões e queimaduras, o que não ocorre em países que optaram por controlar esses produtos.
Na questão do meio ambiente, cigarros eletrônicos regulamentados deverão seguir a Lei federal 12.305/2010, cuja Política Nacional de Resíduos Sólidos obrigaria os fabricantes a realizar logística reversa, dando fins adequados ao lixo eletrônico, algo que obviamente não é realizado pelo mercado ilegal13.
No voto do relator, é destacado o surgimento da EVALI, que de acordo com algumas organizações, seria uma doença causada pelos cigarros eletrônicos, o que é falso e mostra a grande necessidade de aprofundamento no assunto. Tal doença foi fruto de uma contaminação de Acetato de Vitamina E em produtos falsificados para consumo de THC (tetrahidrocanabinol), principal substância psicoativa encontrada nas plantas do gênero Cannabis14.
Não houve nenhum caso registrado de EVALI em pessoas que consumiram exclusivamente produtos regulados contendo nicotina, o que já foi amplamente discutido na comunidade científica15.
Outro ponto crítico do projeto de lei Nº 2158 de 2024 é a tipificação como crime do armazenamento e transporte de forma generalizada, que vai de encontro com a intenção original da Anvisa e seu entendimento oficial. Os diretores da Anvisa já declararam a intenção de tipificar somente para fins comerciais, não para uso ou posse dos consumidores16 e no site oficial da Anvisa há uma página de perguntas e respostas que diz: “O Brasil tem um regulamento que veda a comercialização do produto, mas não o seu uso, ainda que se recomende fortemente a não utilização.” e também “Como o uso do cigarro eletrônico não é proibido, estar com o cigarro eletrônico para consumo próprio não é proibido.17”
O PL Nº 2158 pode sofrer o mesmo problema que enfrentou a ANAC este ano, que proibiu o transporte dos DEFs em voos nacionais por meses, pois concluiu que a palavra “transporte” na RDC 855/2024 se referia à sua interpretação generalizada, o que causou prejuízo para os consumidores.
Após conversas com a ANVISA, a ANAC voltou atrás e permitiu novamente o transporte de produtos para uso próprio18, com o caso tendo até cobertura na mídia internacional19.
Fazemos um apelo para que a Câmara dos Deputados lute por políticas baseadas em evidências científicas atualizadas e independentes, além de dados demográficos dos países que já regulamentaram os produtos, que nos mostram claramente que o caminho da proibição e da criminalização apresenta o pior impacto para a saúde pública e a sociedade.
Curitiba, Paraná, Novembro de 2024.
Direta.org
Referências
O Direta.org é uma organização científica, não governamental, sem fins lucrativos, que representa milhões de consumidores de cigarros eletrônicos no Brasil e luta por políticas de saúde pública pautadas em evidências acadêmicas mais atualizadas, livres de viés, interesses econômicos, políticos ou ideológicos.
A organização não recebe financiamento da indústria do tabaco, em alinhamento com artigo 5.3 da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco da OMS.
1 – PL 2158/2024
3 – Cigarros Eletrônicos: o que devemos saber. Revisão técnica para guiar políticas de saúde pública
4 – Nicotine vaping in England: 2022 evidence update summary
5 – Electronic cigarettes for smoking cessation
10 – Why Brazil should drop its vape prohibition proposal
11 – Proibir cigarros eletrônicos é absurdo, diz especialista britânico
12 – Receita Federal não consegue inibir contrabando de cigarros eletrônicos
13 – Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS)
14 – The outbreak of lung injuries often known as “EVALI” was nothing to do with nicotine vaping
15 – https://colinmendelsohn.com.au/evali-2/
17 – Anvisa – Cigarro eletrônico
18 – ANAC libera embarque em voo com cigarros eletrônicos
19 – Brazil Scraps Flight Ban on Vapes, in Win for Consumer Advocacy