Veículos de imprensa brasileiros estão divulgando a notícia de que um estudo apontou que os cigarros eletrônicos contém 127 produtos altamente tóxicos, mas a realidade é bem diferente.
Nos dias de hoje, a velocidade da informação é muito maior do que antes da invenção da Internet, o que certamente impactou na qualidade do jornalismo. Onde antes havia uma grande equipe de jornalistas, repórteres e editores, que demoravam dias para criar e publicar um artigo, com grande cuidado na checagem de fontes e confirmação de fatos, hoje há equipes menores cujo objetivo é o publicar o maior número possível de matérias, da forma mais ágil possível, para não perder o “furo de reportagem”.
Isso acaba criando grandes problemas, principalmente em temas complexos e polêmicos, com o agravante de que, infelizmente, a ciência não é uma área infalível, pelo contrário, há muitos trabalhos sendo realizados com baixa qualidade, que fazem um desserviço à sociedade e desinformam ao invés de informar.
O último exemplo disso está no artigo replicado em diversos veículos de imprensa, como Metropoles, Gazeta Web, Jornal Floripa e outros.
“…um estudo publicado na revista Nature nesta quarta-feira (8/5) indicou que alguns produtos químicos usados nos vapes podem ter diferentes níveis de toxicidade, sendo que 127 deles são considerados altamente tóxicos quando aquecidos e inalados.” – informa o Metropoles.
O trabalho foi realizado pelo Royal College of Surgeons in Ireland, liderado pelo químico Donal O’Shea, que de acordo com a informação divulgada, usou ferramentas de inteligência artificial para encontrar a quantidade total de substâncias danosas presentes.
A imprensa diz que “A pesquisa apontou que os vapes produzem 127 produtos químicos “agudamente tóxicos”, 153 “perigosos à saúde” e 225 “irritantes ao organismo”. Quase todos os sabores submetidos ao sistema, com ou sem nicotina, tinham pelo menos um produto classificado como perigoso para a saúde.”
Consultamos o cardiologista Dr. Konstantinos Farsalinos, pesquisador sênior da University de Patras, especialista em redução dos danos do tabagismo, especialmente em cigarros eletrônicos e pedimos que analisasse o estudo.
O Dr. Konstantinos disse: “Além da negação do autor a fatos básicos nas suas declarações (como o potencial de cessação do tabagismo dos cigarros eletrônicos, que já está bem comprovado), verifiquei o estudo e há questões importantes.
Todo o artigo se baseia na suposição de que há pirólise na vaporização, mas não fornece qualquer informação sobre que tipo de condições estão associadas à pirólise e se tais condições estão acontecendo com os cigarros eletrônicos.
Portanto, são condições de modelagem para as quais não fornecem nenhuma evidência de que tenham qualquer relevância para as características funcionais do cigarro eletrônico. O relatório classifica a toxicidade para compostos criados a partir da pirólise, mas não sabemos se as condições de pirólise utilizadas no modelo têm alguma relevância para as características funcionais do cigarro eletrônico e não temos ideia das concentrações de tais compostos (se gerados). A toxicidade é baseada na concentração e não na presença dos compostos.
Na realidade, se fizerem a mesma simulação para qualquer alimento cozido, descobrirão que tudo é cancerígeno, com base no pressuposto de pirólise em todos os alimentos cozidos, especialmente se considerarem níveis de temperatura de 400 ou 1000 graus, como tendo alguma relevância para valores em condições realistas. Assim, todo o estudo é um exercício teórico do que aconteceria quando você tivesse a pirólise em compostos de sabor, e eles tentam torná-lo relevante para o uso de cigarros eletrônicos, mesmo sem a compreensão das condições do modelo terem qualquer relevância para os cigarros eletrônicos. Tão decepcionante, inacreditável.
Na introdução eles mencionam: “Estudos mediram temperaturas típicas variando de 100 a 400 °C, dependendo de fatores como potência, materiais da bobina de aquecimento, tamanho da inalação e quantidade de líquido, com temperatura da bobina seca medida acima de 1000 °C [19,20]. Decomposição por pirólise de sabores a estas temperaturas podem produzir um grande número de entidades químicas secundárias desconhecidas, amplificando enormemente os riscos para a saúde de cada sabor.”
Isto é irrelevante para o uso realista do cigarro eletrônico. A referência 19 (https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0195925) foi um estudo medindo temperaturas de um atomizador de bobina superior (EGO CE6!!!) [o especialista faz destaque pois este é um modelo antigo, muito desatualizado, comercializado em 2008 que não existe mais] sem que ninguém usasse o dispositivo. Eles aplicaram 3-6V em atomizadores com resistência de 2,2-3,7 Ohm. Imagine que a aplicação de 6 V em um atomizador de 2,2 Ohm resulta em uma configuração de potência de 16 Watts, para um atomizador primitivo que talvez não exista nos últimos 10 anos. Apesar disso, as temperaturas em uma bobina totalmente úmida foram < 200oC. Com uma bobina seca eles estavam > 1000oC, é claro.
O outro estudo que eles citam (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1438463916000158) usou um consumidor que identificou baforadas secas a 20W (eles usaram um atomizador reconstruível Kayfun). Mesmo assim, eles não mencionam se pediram ao consumidor para dar baforadas com a mesma duração usada no experimento. Além disso, suas medições de temperatura não eram totalmente confiáveis, pois as mediam em um fio de nicromo exposto e pavio de algodão (retiraram o tanque), sem qualquer fluxo de ar!!! Isto é totalmente irrelevante para as condições de utilização do mundo real e é muito claro que o fluxo de ar é crucial para manter as temperaturas baixas. Ao medir os aldeídos, eles usaram uma máquina de fumar e, em comparação com cigarros de tabaco, encontraram 2 a 32 vezes menos formaldeído e 600-2100 vezes menos acetaldeído.”